sexta-feira, 13 de outubro de 2017

A luta entre uma educação ao serviço da ordem dominante e uma educação enriquecedora do homem

Mão amiga acaba de me enviar uma entrevista a Dermeval Saviani (na fotografia ao lado), professor emérito de filosofia da educação UNICAMP (São Paulo, Brasil), intitulada "Aprender a aprender: um slogan para a ignorância" (aqui).

Apesar de ter sido realizada em 2011 mantém actualidade, tanto no Brasil como em Portugal como noutros países americanos e europeus.

De formação marxista, Saviani é autor de uma obra riquíssima na qual interroga, com rigor e profundidade, ideias que têm constituído a base de reformas de diversos sistemas de ensino.

Reproduzo abaixo a entrevista com pequenos cortes. dado interesse que ela mantém desde o início até ao fim. As palavras que dão forma ao título são do entrevistado.
Qual é o papel da escola? 
O papel da escola é o de ser o ambiente adequado para que o professor possa exercer da melhor forma possível o seu papel. 
E qual é o papel do professor? 
O papel do professor é elevar os alunos do nível não elaborado, do nível do conhecimento espontâneo, de senso comum, para o nível do conhecimento científico, filosófico, capaz de compreender o mundo nas suas múltiplas relações e portanto, passar da visão empírica, fragmentada do Mundo, para uma visão concreta, articulada. 
Quem são, politicamente falando, os defensores da pedagogia do «aprender a aprender»? 
Hoje em dia a pedagogia do «aprender a aprender» é a grande referência da orientação dominante. Tanto que está nos documentos oficiais e internacionais que depois se reproduzem em cada nação, como está nos meios de comunicação onde tentam convencer os professores das suas virtudes. O Relatório Jacques Delors das Nações Unidas sobre educação para o século XXI tem como eixo essa orientação do «aprender a aprender» e os países reproduzem isso nas suas políticas educativas. É uma pedagogia que tem origem na escola nova, no construtivismo de Piaget, que estava apoiado no keynesianismo. Agora foi recuperada, no contexto político do neoliberalismo, pelos pós-modernos. A ideia é que todo o ambiente é educativo – aprende-se em diferentes lugar, em diferentes circunstâncias e… também na escola! O argumento que dão para isso é que aquela visão rígida foi superada em benefício de uma sociedade flexível em que nada se pode prever. A escola não pode formar para 5 ou 10 anos, não se sabe como vai ser o futuro que está em constante mudança. Portanto a escola não deve ensinar algo mas apenas aprender. Mas este novo aprender a aprender já nem sequer dá a importância que os construtivistas davam à ciência (...) no Brasil introduzem parâmetros curriculares nos temas «transversais» – é como se os temas não fossem objecto desta ou daquela disciplina mas atravessam todo o currículo – educação cívica, moral, ambiental, sexual. 
Nos seus livros defende que deve haver uma diferença clara entre currículo e extra currículo. 
As actividades devem integrar as actividades da escola desde que elas colaborem para aquilo que é central no currículo. Não se pode apagar essa diferença, como fazem os pós-modernos, para quem tudo tem a mesma importância. Fazer um passeio na cidade e estudar matemática não tem a mesma importância. 
O que pensa da memória, da repetição, no processo de ensino?Esse é um outro aspecto que me parece importante. As teorias psicológicas modernas e pós-modernas tendem a secundarizar a memória enquanto faculdade psicológica e a repetição enquanto estratégia pedagógica (...). A tese de que a criatividade é o oposto da mecanização, da automatização, não se sustenta porque essa visão dá à criatividade um carácter espontaneísta, como se a pessoa pudesse ser criativa a partir do nada. O que se constata no processo de desenvolvimento das crianças, da própria formação, é que a fixação de mecanismos não é impeditiva da criatividade, pelo contrário, é condição da criatividade. 
Um músico só é livre de compor, livre de ser criativo, depois de muitos anos de estudo… 
Sim, outro exemplo que dei é o do aprender a dirigir o automóvel. Enquanto não se mecaniza as operações não se é livre de conduzir um automóvel. Eu fui mais longe e generalizei numa espécie de lei pedagógica. O aprendiz nunca é livre. Ele só é livre depois de dominar o objecto de aprendizagem e quando domina deixou de ser aprendiz. Essa ideia da liberdade do aluno, liberdade de aprendizagem, é um enunciado ideológico (...) 
É preciso estar na escola o dia todo, como estão as crianças portuguesas, para aprender? 
Na educação infantil ou primária não acho produtivo as crianças ficarem 8, 9 horas na escola. Mas isso tem muito a ver com as condições sociais do país em causa – no Brasil a maioria das crianças não tem uma secretária, um lugar para estudar em casa. 
O que pensa de políticas educativas como as que se estão a implementar em Portugal (...)? 
No contexto em que isto está a ser posto há aí um objectivo político e que concorre para esvaziar as escolas do conhecimento elaborado, científico, que é a sua função. A burguesia tende a esvaziar a escola dos conteúdos mais elaborados mediante os quais os trabalhadores poderiam fazer valer os seus direitos, as suas reivindicações. 
Defende que a escola que luta pelo socialismo é aquela onde se ensina o saber da classe dominante à classe dominada? 
Isto coloca em causa quase tudo o que a esquerda tem vindo a defender a respeito da pedagogia… Essa é uma ideia central da proposta pedagógica que formulei. Eu acredito que ela tem base empírica e teórica. Ela tem base empírica a partir daquilo que observamos no dia a dia. Os trabalhadores consideram a escola algo importante, enviam os seus filhos para a escola na expectativa de que lá eles vão aprender. A expectativa deles é que os filhos estudando adquiram condições que eles não tiveram. No livro Escola e Democracia sintetizo assim a fala dos pais: «Se o meu filho não quer aprender o professor tem que fazer com que ele queira.» Essa frase foi interpretada por alguns colegas como sendo a evidência de que eu defendia uma pedagogia autoritária. Eu respondi a esses sectores a dois níveis: primeiro ao nível da linguagem. Eu disse: «Se o meu filho não quer aprender o professor tem que fazer com que ele queira.» Não disse: «Se o meu filho não quer aprender o professor tem que fazer com que ele aprenda, mesmo que não queira.» Isso sim seria impositivo – se ele não quer aprender vai aprender na marra, vou enfiar goela abaixo! O filho, que não tem experiência da vida, das lutas sociais, é compreensível que não perceba, mas o professor tem condições e obrigação de saber a importância do estudo e mostrar para a criança essa importância. Mas a nível teórico, uma resposta mais elaborada a essa crítica deve começar pela diferença entre o empírico e o concreto (...): parte-se do confuso, das primeiras impressões, para uma visão articulada, uma visão de síntese, pela mediação do abstracto, ou seja, da análise (...). Por isso quando me dizem que tenho que ter em conta os interesses dos alunos eu pergunto: do aluno empírico ou do aluno concreto? A escola nova fica no aluno empírico, por isso devemos fazer o que ele tem vontade e cai-se no espontaneísmo. Agora para o aluno concreto (...) é da maior importância passar da visão de senso comum para uma visão articulada, uma visão científica, ter acesso a conteúdos elaborados. Eu tenho que levar em conta os interesses do aluno concreto e portanto deve-se estruturar um ensino que vai além das primeiras impressões, subjectivas, dos desejos subjectivos que esse aluno tem. Mas ele só vai perceber isso na medida em que o professor lhe mostra, fazendo-lhe ver a importância dos conhecimentos para ele assimilar.  
Defende que o conhecimento é um meio de produção e que a burguesia se apropriou dele? 
O conhecimento elaborado é um produto do desenvolvimento da humanidade, um produto do desenvolvimento social do homem no processo de produção da sua existência. A burguesia apropria-se disto como se apropria dos outros elementos, mas isto não significa que ele seja inerentemente burguês. Trata-se de arrancar do controle dominante aquilo que são produções humanas, neste caso o conhecimento. Quando a burguesia era revolucionária, na passagem do feudalismo para o capitalismo, fez isso, arrancou o conhecimento das mãos estritas do clero e da nobreza (...). 
O que significa para si este domínio da tecnologia combinado com uma absoluta ignorância da ciência? 
A educação vai-se cada vez mais reduzindo a operações mecânicas. As máquinas da revolução industrial substituíam a força física do homem, hoje há máquinas que também realizam operações intelectuais. Isso deveria ter como função libertar o homem das funções repetitivas, tanto as braçais quanto as intelectuais, para assim libertar o homem para fruir, pensar, elaborar. Nas condições capitalistas a maioria é colocada na posição de só operar. O que possibilitou a existência dessas máquinas, que envolve matemática avançada, fica restrito a um grupo muito pequeno que frequenta universidades de ponta. O projecto de Bolonha ilustra bem isto, destrói toda a experiência da riqueza universitária europeia, que era um contraponto à americana onde eles têm grandes universidades para formar cientistas de ponta e depois uma grande diversificação de universidades de diferentes níveis. Nós travamos esta luta, entre uma educação ao serviço da ordem dominante e uma educação que seja enriquecedora do homem. É claro que essa outra educação só se pode desenvolver na medida em que está articulada com aqueles que têm interesse nessa nova educação. 

3 comentários:

Anónimo disse...

SÓ QUEM ESTÁ NO CONVENTO, SABE O QUE LÁ VAI DENTRO!

Nesta entrevista notável, o filósofo Dermeval Saviani esparge raios de esperança sobre professores que ainda não veem a luz ao fundo do túnel para onde foram encurralados pelos especialistas da educação, que sintetizam a sua pedagogia revolucionária na fórmula Aprender a Aprender. Ora, é muito fácil verificar, tanto no terreno lavrado, onde se cultivam as batatas e as couves, como no campo da sala de aula, onde se devem cultivar pessoas, que, se entrarmos em ciclos viciosos como o do Aprender a Aprender, acabaremos por nada ensinar!
Apresento dois exemplos práticos:
- Há poucos anos, para conferir, de uma forma solene, o diploma do 12.º ano a todos os alunos de uma turma do ensino noturno, a equipa pedagógica, na qual eu representava o referencial das ciências experimentais, organizou, juntamente com a equipa discente que estava a ser avaliada, uma visita inesquecível a uma Quinta do Douro Vinhateiro. Ao fim do dia, depois de bem comidos e melhor bebidos de vinho maduro branco e tinto, os professores foram unânimes nas altas classificações que atribuíram aos seus competentes pupilos. A participação efetiva numa visita absolutamente turística, que incluiu prova de vinhos, seguida da compra de algumas garrafas para levar para casa, teve tanto peso no processo de avaliação como saber o teorema de Pitágoras, ou ter lido a Cidade e as Serras;
- No chamado ensino recorrente, era eu professor de Ciências do Ambiente- disciplina em que lecionei geografia, física, química, biologia e geologia, pelo menos-, vi, muito frequentemente, chegarem à escola, em bons carros, indivíduos com vinte e tal anos, com bons empregos, tanto no privado como no estado, que não tinham o menor interesse em nenhuma das matérias escolares, mas tinham vindo porque agora estudar é fácil e os diplomas permitiam-lhes grandes progressões nas carreiras profissionais.
Esperando que tenham gostado desta pequena amostra das consequências práticas do Aprender a Aprender,

João Silva

António Bernardo Colaço disse...

É extremamente importante o que consta da entrevista. Ocorre porém sublinhar que o professor(a) tem de ter uma formação ético/profissional que possa transmitir um ensinamento imparcial, para que o aluno absorva a realidade.

Rui Baptista disse...

Excelente análise de um ensino, que a fazer fé neste testemunho (e eu faço-o), abriu as portas às Novas Oportunidades e estas à entrada no ensino superior privado que distribuiu licenciaturas qual padaria que em fornos de ganhos sem escrúpulos venda pão mal cozido e roubado no peso.

E eu que me sinto desiludido do presente e sem esperança no futuro, refilo, escrevo, vocifero até onde o meu civismo me permite, fazendo coro com Martin Luther King: "Nossas vidas começam a terminar no dia em que permanecemos em silêncio sobre as coisas que realmente importam".

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