sábado, 29 de junho de 2013

A química de um pastel de feijão



Texto que acabou de sair na revista da Escola Secundária Henriques Nogueira de Torres Vedras com o singular super-título de Singularidades da Ciência que me recordou um conto de Eça de Queirós. É um prazer colaborar com os óptimos projectos que são desenvolvidos nas nossas escolas. Além disso, graficamente a revista está muito bonita.

Na presença de um pastel de feijão, o olhar e o olfacto originam informações químicas que, ao chegarem a cérebro, vão desencadear recordações e a libertação de neurotransmissores que provocam reacções fisiológicas como a salivação. O trincar do pastel é acompanhado por sons subtis que evocam memórias e pela solubilização das moléculas que vão impressionar as papilas gustativas. Em simultâneo, chegam, pelo interior da boca, moléculas de cheiro agradável ao receptores olfactivos, desencadeado mais memórias e a libertação de endorfinas.

Quando comemos estão presentes todos os nossos sentidos. E a química é importante em todos eles porque é fundamental na transmissão e interpretação dos impulsos nervosos. O paladar e o olfacto são, no entanto, sentidos químicos de forma directa, pois reagem às moléculas que se solubilizam na saliva e às moléculas que, passando ao estado gasoso, vão excitar o sentido do olfacto. Estes dois sentidos funcionam de forma complementar (muito do sabor é perdido a comer com o nariz entupido), estando o olfacto muito ligado à química das memórias. No caso da visão, o mecanismo é também químico: a luz que chega à retina vai provocar reacções fotoquímicas que envolvem pigmento biológicos, sendo a informação enviada ao cérebro de forma química.

A maior parte dos doces é pouco equilibrada em termos nutricionais devido a excesso de açúcares ou de gorduras, mas o seu consumo moderado e ocasional é uma fonte de alegria que contribui para o equilíbrio emocional. Em particular os pastéis de feijão, embora metade da sua composição seja açúcar (sacarose), são muito saborosos e têm aspectos nutricionais interessantes. Na sua receita entra, além da sacarose, farinha, feijão, amêndoa, gemas de ovo e gorduras. O feijão e a amêndoa são misturas complexas de glúcidos, proteínas e lípidos (entre outras substâncias) que, em conjunto com a farinha e as gemas de ovo, criam alguma variedade nutricional. A sacarose é também uma substância natural, obtida pela purificação da mistura natural desta substância com outros compostos presentes na cana de açúcar. Trata-se de um dos materiais naturais mais puros a que temos acesso no nosso dia a dia e o seu consumo moderado é provavelmente muito mais saudável do que o consumo massivo de edulcorantes artificiais (agora de mais baixo custo que a sacarose) em doces e refrigerantes industriais. 
 
Para fazer os pastéis, o feijão é demolhado, retiram-se as suas cascas e finalmente é cozido. Durante o decorrer desses processos, uma boa parte dos oligossacarídeos, solúveis em água, é eliminada. Estes compostos são açucares, presentes nos feijões, couves e outros vegetais, que não são digeridos pelos seres humanos, mas existem bactérias perto do final do intestino que os adoram, provocando, quando comidos em excesso, os incomodativos gases.

Estão actualmente registados (www.cas.com) mais de setenta milhões de compostos químicos e todos os dias são descobertos, ou inventados, mais alguns milhares. Muitos dos compostos que são descobertos são de origem biológica e alguns deles poderão estar na origem a novos medicamentos, quem sabe, vindos de humildes legumes como o feijão. A verdade é que nas bases de dados de artigos científicos tem, nas ultimas décadas, aumentado visivelmente a referência à química do feijão, existindo muito mais referências à química deste legume que à da amêndoa.

Confeccionar e saborear pastéis de feijão tem muita química, assim como tem química o mundo que nos rodeia, basta estarmos atentos.

1 comentário:

José Batista disse...

Acerca da relação entre visão, olfacto e paladar há experiências simples e muito engraçadas com resultados espectaculares: há alguns anos, em aulas práticas de técnicas laboratoriais de biologia de 12º ano, lembro-me de termos feito a seguinte experiência:

- Os alunos de um grupo ficavam fora da sala, longe, e só entravam nela com os olhos e o nariz bem tapados (tapar bem bem o nariz é menos fácil...), pela mão de alunos "guia" para fazerem de provadores (sem visão e sem olfacto) de cubinhos de diversos vegetais: pêra, maçã, cebola, melão...

- Dentro da sala, outro grupo de alunos havia preparado diversos pires, cada um com os cubinhos de uma dada fruta espetados em palitos.

- Um terceiro grupo de alunos registava as reacções de cada aluno provador bem como a sua capacidade de adivinhar o que, em cada momento, trincava.

Esta experiência era bastante divertida nos casos em que alunos trincavam normalmente pedaços de cebola e diziam, hesitantes, que era... maçã, por exemplo.

É claro que, para resultar, olhos e narizes têm que estar bem tapados. E é preciso também que os alunos com os olhos e o nariz destapado não se "escangalhem" a rir com cada "erro" dos provadores de serviço.

Mas é muito ilustrativo... e divertido também.

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