quinta-feira, 29 de abril de 2010

O desporto segundo Sílvio Lima

Texto de João Boavida, antes publicado no diário As Beiras, a propósito da recente publicação do livro Sílvio Lima e o desporto, de Pedro Falcão.

Um acaso feliz da vida académica fez-me estar na origem de um livro de Pedro Falcão, lançado agora pela Imprensa da Universidade de Coimbra, Sílvio Lima e o desporto.

O livro resulta de uma investigação de Mestrado e teve a sorte (e o mérito) de descobrir cerca de cem artigos sobre desporto, publicados por Sílvio Lima entre começos de 1939 e finais de 1943, tão esquecidos que deles se tinha perdido notícia e localização. Foram agora editados com uma introdução bastante desenvolvida, de Pedro Falcão, e que, juntamente com os livros que Sílvio Lima escreveu sobre o tema (Ensaios sobre o desporto, Desporto, jogo e arte, Desportivismo profissional – desporto, trabalho e profissão) nos dá uma visão rica e completa das suas concepções desportivas.

Fui ainda aluno de Sílvio Lima. A sua carreira académica foi, como se sabe, profundamente prejudicada pelo Antigo Regime, como retaliação pelo seu agudo espírito crítico, inteligência fulgurante e extraordinária coragem. E apesar de o ter como professor já no final da sua carreira, ele foi um mestre de rigor científico, de largueza e profundidade cultural, de erudição adequada, de correcção sintáctica e linguística. Sílvio Lima está entre os mestres que nos ensinavam a reflectir, a investigar com rigor, a ser logicamente exigentes e a medir as palavras.

Este livro revela a clareza como pensava e o modo impecável como escrevia. Da novidade dos temas, para a época, ao modo profundo e frontal como abordava os problemas; da dignidade académica que lhes conferia, à importância que reconhecia à matéria desportiva; da capacidade filosófica com que analisava os desportos, à crítica à mentalidade reinante; da variedade dos temas à qualidade e clareza da sua escrita, tudo nele é exemplar.

Muitas das suas ideias sobre o desporto são hoje correntes, mas que não o eram há setenta anos. Como, por exemplo, a sua função educativa e catártica, a força para vencer o medo e a inibição, a fonte de vida e de saúde que representa, a coragem que desenvolve, a beleza, harmonia e libertação que proporciona. Sem esquecer que o jogo e a competição obedecerem a regras, valorizando a disciplina, a interacção, o espírito de equipa e a união de forças. Importante também a sua apologia do desporto feminino, sobre o qual reinavam absurdas ideias.

Em suma, um livro da maior actualidade e importância para quem queira pensar o desporto, fazê-lo objecto de reflexão filosófica, livrá-lo da distorção que a actual profissionalização e a mercantilização descabelada lhe provocam. É ainda um bom exemplo de como, em plena escuridão política, se pode ser (e se foi) clarividente, moderno e actuante.

2 comentários:

joão boaventura disse...

A Direcção-Geral dos Desportos, em 1987, pediu autorização para reeditar "Desportismo Profissional. Desporto, trabalho e profissão", considerando que a edição de 1939, da Inquérito, se encontrava esgotada.

Dada a respectiva autorização, saía assim nova edição de três mil exemplares, em Novembro de 1987.

Peço desculpa mas não resisto a transcrever o Prefácio do autor:
__________________________

Depois dos "Ensaios sobre o Desporto" (1937) e do "Desporto, Jogo e Arte" (1938) sai hoje a lume o "Desportismo Profissional" (1939).

Neste voluminho analisa-se o jogo desportivo nas suas múltiplas relações com o trabalho e a vida profissional - tema que se me afigura ser de profundo interesse nacional e internacional.

Aos que opinam constituir o desporto um assunto frívolo, indigno de atrair a lupa crítica dum antigo e modesto professor universitário como eu fui, replicarei que é esse pensar um juízo erróneo. Na "casa de Júpiter" nada existe de frívolo; a própria frivolidade é coisa séria para os que dela se abeiram com olhos investigadores.

Em Portugal, o desporto tem sido presa de sólidos estudos médico-higiénicos. Faltava analisá-lo "filosoficamente", integrando-o dentro da linha geral do viver humano. Foi o que fiz, ou julgo tê-lo feito: relacionar o desporto com a arte, a ciência, a economia, a ética, a política, a religião, a pedagogia.

A quem tiver lido, com evangélica paciência, os meus ensaios críticos, decerto não soará mal esta tese judicatória: o desporto é uma questão grave (grave, quer dizer, etimologicamente, pesada) que só parece leve aos de cabeça leve como o sabugo e o algodão.
__________________________

Termina aqui o Prefácio, mas não deixa de ser curioso que, passados 11 anos, em 1950, João Pereira Bastos, apresentasse, como tese de fim de curso, na Faculdade de Direito de Lisboa, "Desporto Profissional", também publicado pela Direcção-Geral dos Desportos, em 1986.

O mesma tema visto por dois prismas, o da filosofia e o do direito: este, em resposta aos aspectos jurídicos levantados pela profissionalização do desporto; aquele acautelando a ética, submersa pelo doping e pela violência.

Um e outro lançaram avisos que ninguém hoje pretende seguir.

joão boaventura disse...

Por lapso não referi, o que ora acrescento, que a Direcção-Geral dos Desportos, devidamente autorizada pelo autor, permitiu a 2.ª edição, em 1987, com uma tiragem de 3000 exemplares cada uma, das seguintes referências:

"Ensaios sobre o desporto", Livraria Sá da Costa, Lisboa, 1937
"Desporto Jogo e Arte", Livraria Civilização-Editora, Porto, 1938

A primeira obra tem esta dedicatória:

"À Memória do Rei Dom Duarte
Verdadeiro modelo de pedagogo desportista".

E a segunda:

"À Junta Inglesa
«ACADEMIC ASSISTANCE COUNCIL»
pelo que lhe devo"

Na autorização à edição dos "Ensaios sobre o Desporto", Sílvio Lima explicou, na sua carta de 15.06.1987:

"Organizei-os desta forma: logo na primeira página de cada ensaio formulo uma temática, a que se segue uma problemática com a respectiva dialéctica e finalmente uma conclusão crítica que fica sempre aberta porque não se trata de estabelecer uma dogmática. Isso seria contra o espírito daquilo a que se chama ser um verdadeiro ensaio."

Tinha então, Sílvio Lima, 83 anos.
Se nos deixou em 1993, legou-nos três peças sobre o Desporto que, depois de lidas, ainda hoje, permanecem com uma actualidade impressionante

DUZENTOS ANOS DE AMOR

Um dia de manhã, cheguei à porta da casa da Senhora de Rênal. Temeroso e de alma semimorta, deparei com seu rosto angelical. O seu modo...